A III Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na cidade de Durban, África do Sul (2001), teve papel fundamental no adensamento do debate sobre as ações afirmativas em nosso país e consequentemente na adoção de políticas públicas para a correção de injustiças históricas provocadas pelo longo processo de colonialismo e escravidão da população negra e indígena. Dezoito anos pós-Durban, para onde caminham as Ações Afirmativas no Brasil?
Batizada de “Conferência de Durban”, o fórum global promovido pela ONU foi precedido de um intenso e rico processo de construção envolvendo instituições dos Estados participantes e organizações sociais. Foram cerca de três anos de debates, seminários, colóquios e pré-conferências locais e regionais que constituíram subsídios fundamentais para o aprofundamento das reflexões e a formulação de medidas de reconhecimento e responsabilização estatal diante das persistentes consequências da colonização europeia, das politicas racialistas de segregação, dos holocaustos negro e judeu e do escravismo no mundo, agravadas com a atualização dos mecanismos de exclusão no bojo da ascensão da fase neoliberal do capitalismo.
Com ampla participação de países e a subscrição de seus documentos finais, excetuando-se Estados Unidos da América e Israel, a Conferência de Durban representou um marco global de extrema importância. A Escravidão foi reconhecida oficialmente pela ONU como crime de lesa-humanidade. Ao lado disso, todos os países foram instados a promover políticas de reparação aos grupos historicamente vitimados pelo racismo, discriminações, xenofobia e intolerância e opressões congêneres.
O cenário das décadas anteriores à realização da “Conferência de Durban” era de um incipiente debate sobre a reparação da escravidão. No Brasil, o conjunto do Movimento Negro ainda não dispunha de consenso sobre o tema, bem como emergia uma virulenta reação das elites herdeiras diretas da acumulação econômica propiciada pelo modo de produção baseada no escravismo. Assim, a discussão sobre políticas de reparação, de correção das dívidas históricas com a populações negra, indígena e não-branca no geral, era limitada, sem foco devido, pontual e carente de consensos gerais.
Todo o processo de preparação para Durban e o período imediatamente posterior à sua realização foi de intensa ebulição do debate teórico-político, de revisão das leituras oficiais dos sucessivos governos acerca das consequências do escravismo colonial, de refutação do famigerado mito da democracia racial e de conformação de um amplo campo político, tendo em vista a efetiva implantação da Declaração final e no Plano de Ação de Durban.
Ainda no governo FHC, sob intensa pressão do Movimento Negro, abriu-se importante trincheira ao se constituir o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para elaborar e implementar as precursoras Ações Afirmativas para a carreiras diplomáticas no Itamaraty.
O GTI deu passo decisivo e fundamental ao apresentar um desenho institucional de políticas para reverter a histórica exclusão da população negra das carreiras diplomáticas no Brasil.
Com a vitória de Lula na eleição de 2002, o primeiro operário eleito para presidente da República, apoiado por forças de centro-esquerda e absolutamente vinculado ao conjunto de demandas do povo e dos movimentos sociais organizados, teve início uma fase inédita de ações destinadas à atenderem às deliberações da Conferência de Durban. A criação da então Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) – mais tarde transformada em Ministério – é um forte exemplo do compromisso assumido pelo novo governo federal.
Sob intensa pressão e diálogo do Movimento Negro, o Governo Lula (e posteriormente Dilma) abriu uma avenida na implementação de políticas públicas de reparação histórica à população negra e demais populações discriminadas. Além da criação da Seppir em 21 de março de 2003, uma legislação avançada foi aprovada, garantindo o decreto que regulamenta a demarcação e titulação das terras de quilombos e instituindo o Programa Brasil Quilombola (Decreto 4887/03), a implementação da história e cultura afro-brasileira, africana e indígena por meio das leis 10639/03 e 11.645/08, a política de saúde da população negra (Portaria Nº 992, de 13 de maio de 2009, que institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – PNSINPN), a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010 e em seguida o Decreto nº 8.136/2013, institui o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), a aprovação da Lei de Cotas Raciais nas Universidades Lei 12.788/2012, Programa Juventude Viva (2012) e a Lei de Cotas Raciais no Serviço Público Lei 12.990/2014 que reservou o percentual de 20% das vagas dos concursos públicos para pessoas autodeclaradas negras.
Também uma série de espaços de participação social foram criados, reformulados e intensificados como conselhos, comitês intersetoriais, grupos de trabalho, conferências, dentre outros. Todos atualmente sob ataque do Governo neofascista de Bolsonaro.
Este conjunto de medidas combinada às políticas de geração de trabalho e renda, valorização do salário mínimo, bolsa família, interiorização do ensino técnico e superior, política habitacional, políticas culturais nas periferias foram responsáveis pela melhoria da qualidade de vida e ascensão social e econômica de parte da população negra.
Essa alteração não tardou a ser rapidamente questionada pela elite escravista brasileira, que aderiu desavergonhadamente ao golpe mascarado de impeachment sem crime de responsabilidade em 2016 e, em 2018, às eleições de um presidente de extrema-direita, com feições autoritárias, entreguista e anti-povo que tem desmontado o conjunto dos direitos sociais do povo e demolido a nossa já incipiente democracia.
Assim, diante deste histórico e do complexo contexto atual, a União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil, seção-Bahia, por meio de sua Comissão de Promoção da Igualdade (CPIR), realizará o debate intitulado “Para onde caminham as Ações Afirmativas no Brasil? Uma reflexão após 18 anos de Durban no próximo dia 17 de setembro às 17h na sede da OAB (R. Portão da Piedade, 16 –Centro).
Contaremos com as enriquecedoras presenças do Coordenador da Conen (Coordenação de Entidades Negras) Gilberto Leal, da pedagoga e Deputada Estadual Olívia Santana, ambos participantes da Conferência de Durban em 2001, da Psicóloga e Pró-Reitora de Ações Afirmativas da Ufba Cássia Maciel e da Advogada, da Presidenta da Comissão de Promoção da Igualdade Racial Dandara Pinho e da Presidenta Nacional da União de Negras e Negros Pela Igualdade (Unegro), a socióloga Ângela Guimarães.
Desta forma, convidamos todas e todos interessados a se somarem no debate visando o fortalecimento da consciência sobre a pertinência, urgência e necessidade das ações afirmativas e da luta de resistência às tentativas de desmonte destas políticas em nosso país.
Publicado originalmente pela Unegro