Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) estão disputando o segundo turno das eleições para a Presidência da República. Com 46% dos votos válidos no primeiro turno, o candidato do PSL alavanca sua campanha contra o que chama de “doutrinação” que, segundo ele, está presente nas escolas e pretende combatê-la com a modificação dos conteúdos e métodos de ensino. “Conteúdo e método de ensino precisam ser mudados. Mais matemática, ciências e português, sem doutrinação e sexualização precoce. Além disso, a prioridade inicial precisa ser a educação básica e o Ensino Médio/técnico”, declara no texto do projeto.
Já o candidato do PT, que obteve 29% dos votos, destaca em seu plano de governo a Concretização das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), mas reitera a necessidade de ajustes que, de acordo com Haddad, precisam ser feitos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “No ensino fundamental, serão realizados fortes ajustes na Base Nacional Comum Curricular, em diálogo com a sociedade, para retirar as imposições obscurantistas e alinhá-la às Diretrizes Nacionais Curriculares e ao PNE”, afirma.
Para analisar os principais pontos dos dois planos de governo em relação à Educação, especialistas de diversos campos da área avaliam as propostas dos candidatos.
Mais Língua Portuguesa, Matemática e Ciências
Em seu plano de governo, o candidato do PSL afirma que dará mais ênfase a três disciplinas: Matemática, Ciências e Língua Portuguesa. Apesar da preocupação com o melhor desempenho dos alunos nas avaliações e rankings, a intenção de Jair Bolsonaro de aumentar a carga horária de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências, disciplinas avaliadas no Pisa, por exemplo, em detrimento a outras disciplinas, não parece uma solução possível na opinião da professora da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Márcia Jacomini. “Os outros conteúdos são tão importantes para a formação das novas gerações quanto esses três”, diz. Márcia ainda ressalta: “O plano desconsidera que a Educação Básica visa garantir a formação integral dos estudantes, conforme preconiza a LDB/96, sendo necessário para isso que todas as disciplinas sejam contempladas no currículo”.
Escola sem doutrinação
Além da questão das três disciplinas, em seu plano, o candidato do PSL afirma que não vai haver o que chamou de “doutrinação”. A frase é repetida em um quadro em vermelho: “Um dos maiores males atuais é a forte doutrinação”, sem, no entanto, dar mais detalhes do que seria ou como seria feita esta suposta doutrinação.
João Batista Araujo e Oliveira, Ph.D. em Educação e presidente do Instituto Alfa e Beto, afirma que a escola existe para complementar a ação da família na educação dos filhos. “Historicamente, a escola teve como principal função a transmissão dos conhecimentos produzidos pela humanidade, especialmente pela civilização em que a escola se insere, além de capacitar os indivíduos a criticar e avançar esses conhecimentos, mas nada disso é neutro”, diz. João Batista ainda explica que “historicamente, as escolas também receberam outras funções, como a educação religiosa e de valores morais, cívicos e sociais (em vários países e momentos da história). Também nada disso é neutro.” Para ele, “o currículo deve ensinar as pessoas a pensar, mas não sobre o que pensar”.
A coordenadora de Políticas Educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda reforça que a “doutrinação”, nos termos em que o programa do candidato do PSL coloca já não é realidade nos currículos brasileiros hoje. “Não temos mais Instrução Moral e Cívica (1925-1931; 1942-1962) ou Organização Social e Política do Brasil (1962-1993), conforme elas eram compostas em seu conteúdo e forma quando existiram nos currículos. Tais disciplinas vieram de períodos de clara doutrinação, em que o Estado se inseria na escola com fim de transformá-la em instrumento de construção da cultura cívica nacionalista a serviço dos projetos de sociedade determinados pelos seus dirigentes”, defende.
BNCC
Tanto Fernando Haddad quanto Jair Bolsonaro citaram em seu plano de governo a proposta de realizar mudanças na BNCC. Segundo especialistas, isto revela que as preocupações de ambos os lados parecem mais voltadas para questões de natureza ideológica do que da estrutura e sequência do currículo. “Nos países educacionalmente desenvolvidos, também existem discussões dessa natureza, mas em nível menor”, diz João Batista, afirmando que nesses lugares a discussão concentra-se no conteúdo, estrutura e sequência do que deve ser ensinado. “Se um novo governo se dispuser a discutir isso, de maneira séria, seria uma enorme contribuição, uma vez que é natural que essas divergências ocorram, mas é uma pena que não haja espaço para um encaminhamento mais técnico do tema”, acrescenta.
Paulo Freire
No plano de governo de Jair Bolsonaro, o candidato expõe: ” Além de mudar o método de gestão, na Educação também precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire”. Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e antiga diretora do Banco Mundial, afirma que é importante entender alguns textos do autor no contexto em que foram escritos, quando apenas uma parcela da população tinha acesso a escolas e as instituições de ensino não se preparavam para ensinar a todos. “A BNCC, por exemplo, não cita Paulo Freire e sequer busca suporte em suas teorias. Na descrição das competências e habilidades é ressaltado, como a moderna teoria pedagógica faz e insuspeitos documentos da OCDE e do BID corroboram, a importância do pensamento crítico e da cidadania global”, destaca. Para Cláudia, não faz sentido que essa pretensão faça parte de um programa de governo. “Não cabe ao Estado definir uma filosofia de Educação e as contribuições de Paulo Freire, a despeito de certa percepção de segmentos da população ao contrário, foram positivas”, explica.
Integração
Fernando Haddad (PT) ressalta a integração nacional na Educação em seu plano de governo, em outros pontos Bolsonaro também enfatiza essa importância. Entre as diretrizes destacadas pelo plano do PT está a “institucionalização do Sistema Nacional de Educação, instituindo instâncias de negociação interfederativa; criação de política de apoio à melhoria da qualidade da gestão em todos os níveis e aperfeiçoamento do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica)”.
Para Márcia Jacomini, essa proposta estaria mais articulada ao que a maioria dos movimentos de educadores tem apresentado nas Conferências Nacionais de Educação e que em parte está no Plano Nacional de Educação (PNE). Mas para o presidente do Instituto Alfa e Beto, as palavras “negociação interfederativa” não dizem nada especificamente. “A meu ver uma clareza sobre os papéis dos entes federativos é muito mais importante do que a forma de relacionamento – pois esta já é prevista na Constituição e nas leis”, destaca.
O candidato do PT também destaca entre as diretrizes que é necessário a “criação de novo padrão de financiamento, visando progressivamente investir 10% do PIB em educação, conforme a meta 20 do PNE; implementação do Custo-Aluno-Qualidade (QAQ) – valor mínimo de recursos a serem investidos por aluno em cada etapa e modalidade da Educação Básica pública – e institucionalização do novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), de caráter permanente, com aumento da complementação da União; retomada dos recursos dos royalties do petróleo e do Fundo Social do Pré-Sal”.
De acordo com João Batista, no contexto fiscal e no momento demográfico em que se encontra o Brasil, a proposta parece inviável e seria desnecessário investir 10% do PIB na Educação. “Ainda que fosse desejável, é imprescindível aumentar a eficiência antes de jogar mais recursos na Educação. Estudos realizados pelo Instituto IDados mostram que o custo real do PNE, se fosse implementado, atingiria mais de 15% do PIB”, afirma.
Já para a coordenadora de Políticas Educacionais da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, o Fundeb seria uma das únicas grandes políticas educacionais do país dos últimos 10 anos, que foi integralmente implementada e se sustenta até hoje. “Ele foi responsável não só pela garantia de um aporte mínimo de recursos para a Educação Básica, como também por uma maior redistribuição desse recurso”, diz. Dessa forma, Andressa Pellanda defende que o Fundeb deva ser permanente e lembra que os debates nas duas Propostas de Emenda à Constituição que tramitam no Congresso Nacional que dizem respeito ao novo Fundeb convergem quanto a esse ponto. Segundo ela, o que seria preciso melhorar é o percentual mínimo de complementação da União, que hoje é de 10%. “Para a implementação do Custo Aluno-Qualidade (CAQi/CAQ), é necessária uma complementação da União em um patamar de 50%, Haddad não especifica isso em seu plano”, afirma.
Educação a distância
O candidato Jair Bolsonaro (PSL) destaca em seu projeto a importância da Educação a distância: “deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma dogmática. Deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais”. Apesar de não falar em seu plano de governo em qual etapa do Ensino a educação a distância seria aplicada, em entrevista concedida em agosto ao jornal Folha de S. Paulo e ao jornal O Globo, Bolsonaro afirmou que “pode ser para o ensino fundamental e médio, até universitário”. De acordo com Cláudia Costin, a Educação a distância não deveria ser adotada para o Ensino de crianças, adolescente e jovens, a não ser em situações excepcionais. “Muito do que se aprende na escola é vivencial, ou seja, depende das interações entre os alunos e destes com um adulto de referência, no caso, o professor”, afirma.
A antiga diretora do Banco Mundial relembra que há ocasiões em que as distâncias demandam suporte de tecnologia, como é o caso do Centro de Mídias da Amazônia que, para atender às populações ribeirinhas do estado no seu direito à educação, no Fundamental II e no Ensino Médio, oferece aulas irradiadas para centros localizados nas proximidades de aldeias e pequenas vilas. “Mas a metodologia é presencial, mediada por tecnologia, em outros termos, há um professor generalista organizando o processo de aprendizagem, inclusive o acesso às transmissões de aulas pela TV”, destaca. Para Cláudia, a Educação do futuro vai envolver um ecossistema que integra ensino presencial com modalidades de educação a distância, em processos em que a tecnologia atua como suporte à atuação de professores e alunos.
Por fim, Fernando Haddad enfatiza em seu projeto a inclusão digital nas escolas: “O governo Haddad também vai promover a inclusão digital e tecnológica das crianças brasileiras, introduzindo, desde o primeiro ano do ensino fundamental, com a infraestrutura necessária, o trabalho com as linguagens digitais”. Além disso, o plano fala sobre a inclusão de pessoas com deficiência nas escolas: “O governo Haddad também consolidará a política de educação especial na perspectiva inclusiva em todas as etapas e modalidades de ensino”, descreve. Segundo o presidente do Instituto Alfa e Beto, o trabalho com linguagens digitais não mudaria a Educação no curto prazo. “Mas é algo, sim, que deve ser perseguido sem açodamento. Não é assunto simples nem para resolver no curto prazo, mas é importante ir caminhando e aprendendo”, diz. A professora da Unifesp Márcia Jacomini também destaca que ambas as propostas seriam necessárias e estão presentes no PNE 2014-2024. “A consolidação dessas políticas demanda recursos financeiros para viabilizar os projetos que visam a inclusão digital e a educação inclusiva”, conclui.
Publicado originalmente no site Nova Escola