Os empreendedores negros foram mais prejudicados pela pandemia do que os brancos e continuam sendo, mesmo após a reabertura do comércio e a flexibilização das medidas de distanciamento. O percentual de pretos e pardos com empresas ainda fechadas ou com negócios interrompidos é de 18%. Entre brancos, o índice é de 15%.
Os dados são da oitava edição de pesquisa sobre o impacto da crise sanitária nos empreendimentos, feita entre 28 de setembro e 1º de outubro pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). A diferença entre os números pode parecer pequena, mas há disparidades em diversos outros aspectos, os quais evidenciam diferenças anteriores à pandemia.
Entre os negros, 76% relataram diminuição do faturamento (contra 73% dos brancos), 46% têm dificuldades para manter o negócio (contra 41% dos brancos), 36% têm dívidas em atraso (contra 27% dos brancos) e 12% conseguiram crédito em banco (contra 18% dos brancos).
“A queda de faturamento foi próxima, mas, historicamente, a média de faturamento dos empreendedores negros já é menor”, compara o economista Rafael Moreira, assessor da Diretoria Técnica do Sebrae Nacional. Ele observa que, tanto agora quanto antes, o empreendedor negro enfrenta mais dificuldade para conseguir crédito, o que explica, em parte, por que o endividamento deles é maior.
“Isso é um gargalo. Os empreendedores ficaram de março a junho faturando metade do que ganhavam antes, mas as contas continuaram chegando. Mesmo com a situação tendo começado a melhorar, o patamar está abaixo do período pré-crise”, explica. “Então, o empreendedor, em geral, está desesperado por crédito. O endividamento maior dos negros é, sim, fruto dessa maior dificuldade que eles têm de conseguir crédito”, completa.
Juntando o contexto de racismo estrutural ao cenário da pandemia, não é difícil entender por que os empreendedores negros estão menos otimistas do que os brancos, segundo a pesquisa do Sebrae. A crise sanitária acelerou a necessidade de digitalização empresarial, adaptação para a qual havia menos negros preparados.
Se empreendedores negros têm pior desempenho com a pandemia, isso significa que mais da metade dos negócios do país passa por isso e há chances de retrocessos. De acordo com o Sebrae, negros estão à frente de 51% das empresas no território brasileiro. O país conta com mais de 5,8 milhões de empreendedores negros, movimentando cerca de R$ 219,3 bilhões por ano, segundo o Instituto Locomotiva com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Suporte do Sebrae
O Sebrae oferece apoio e capacitação a empreendedores, inclusive gratuitamente. O programa Up Digital, por exemplo, ajuda empreendedores a se digitalizarem. Saiba mais pelo site, em que é possível conversar por chat com consultores gratuitamente, ou pelo telefone 0800-570-0800.
Efeitos na sociedade
Falências e perdas entre empresários pretos e pardos trazem enormes impactos sociais, já que o empreendedorismo pode ser um “caminho alternativo para redução de desigualdades”, conforme explica José Vicente, reitor e fundador da Universidade Zumbi dos Palmares. Quando negros são donos de empresas, há maiores chances de contratação e de tratamento igualitário de trabalhadores pretos.
O racismo pode aparecer pelo percurso desses empresários e é preciso passar por ele para conseguir empreender, o que exige capacitação e vontade. “Quando você tem habilidade e talento, você tem que ir e derrubar esse muro. Tendo disposição e dom para a área, todos os desafios e limites são mais facilmente superados, incluindo o racismo”, afirma.
É assim que o tatuador André Luís Ramos, 30 anos, conhecido profissionalmente como Andre Ráms, enfrenta as dificuldades. Há quase dois anos, ele atende na Barbearia Elvis, no Taguatinga Shopping. Antes disso, teve um estúdio no Riacho Fundo 2. O traço dele é fino e realista e atrai um público bastante variado, incluindo muitas mulheres, mesmo atuando numa barbearia.
Andre nunca deixou que o racismo o impedisse de progredir na carreira. “Existe, sim, muito preconceito. Tem pessoas que acham que você merece menos, que deve cobrar menos e que não é tão bom por ser negro”, relata o morador do Recanto das Emas. Às vezes, a discriminação é sutil, observa Andre, por meio de uma brincadeira ou piada. “Venho de família negra e aprendi, desde cedo, a me posicionar, mesmo antes de ser tatuador”, conta. Para não criar conflitos, Andre, por vezes, “abstrai e finge demência”.
Artista diverso
A história com a tatuagem começou aos 15 anos, da primeira vez, quase como uma aventura: um amigo pediu que ele fizesse uma tattoo mesmo sem experiência alguma. O experimento deu certo e outras pessoas passaram a requisitar trabalhos. Ele resolveu parar porque nunca tinha feito cursos na área e poderia ser perigoso. Desde jovem, ele desenhava e era grafiteiro.
Vários dos amigos do meio artístico se tornaram tatuadores. No início, Andre rejeitou a possibilidade para ele. “Meu sonho mesmo era pintar telas, e eu não achava certo que a única possibilidade de ganhar dinheiro em Brasília com a minha arte fosse a tatuagem”, conta.
André trabalhou como vendedor e atendente de telemarketing e percebeu como era mais difícil conseguir emprego. Ele retornou à tatuagem, fez cursos e certificações nacionais e internacionais e abraçou as possibilidades que ser empreendedor poderiam trazer. “Quando você é uma empresa, não tem limite de ganhos. Quanto mais você trabalha, mais ganha”, diz. Hoje em dia, boa parte dos clientes o encontram pelo Instagram.
io artístico se tornaram tatuadores. No início, Andre rejeitou a possibilidade para ele. “Meu sonho mesmo era pintar telas, e eu não achava certo que a única possibilidade de ganhar dinheiro em Brasília com a minha arte fosse a tatuagem”, conta.
André trabalhou como vendedor e atendente de telemarketing e percebeu como era mais difícil conseguir emprego. Ele retornou à tatuagem, fez cursos e certificações nacionais e internacionais e abraçou as possibilidades que ser empreendedor poderiam trazer. “Quando você é uma empresa, não tem limite de ganhos. Quanto mais você trabalha, mais ganha”, diz. Hoje em dia, boa parte dos clientes o encontram pelo Instagram.
A pandemia afetou o trabalho e, por atuar num shopping, o funcionamento da barbearia foi interrompido por um longo período. “O impacto foi brutal. Mesmo quando outras lojas reabriram, nós permanecemos fechados por muito tempo. Foi um baque muito grande, e o faturamento ainda não voltou à normalidade”, revela.
Apesar do prejuízo, a crise sanitária trouxe para Andre mais tempo ocioso antes da reabertura dos shoppings, o que o ajudou a retomar o antigo sonho de também pintar telas. Hoje, ele vende pinturas por meio de uma galeria on-line.
Diferenças raciais
Certas características dos negócios tocados por pretos e pardos fazem com que eles tenham menos fôlego para resistir a crises. “De modo geral, o empreendedor negro tem menor escolaridade, tem a empresa há menos tempo e faixa de rendimento menor”, diz Rafael Moreira, do Sebrae. Cerca de 68% dos pretos e pardos são microempreendedores individuais (MEIs), enquanto 49% dos brancos estão nesse porte. A maior parte dos MEIs empreende por necessidade e não por oportunidade.
As áreas de atividades apresentam diferenças raciais: há mais negros concentrados em ramos voltados a produtos e serviços para o consumidor final, como salão de beleza, que sofrem mais que a indústria ou serviços empresariais. “O consumo das famílias não voltou a um nível pré-pandemia. As pessoas ainda têm medo. Tudo isso também impacta a questão, sem diminuir o impacto do racismo estrutural”, afirma Moreira.
Maquiadora, influenciadora digital e modelo plus size, Micheline Ramalho, 35 anos, sentiu o impacto da pandemia no trabalho. Passou a ser inexistente a demanda de maquiagem para eventos, por exemplo. No entanto, a procura pelo curso de automaquiagem está em alta. Ela dá as aulas num ateliê em Samambaia.
“Atendo, no máximo, duas pessoas por sessão e só abro agenda terças e quintas”, conta. Como empreendedora negra, ela sofreu racismo em muitos momentos, mas não se deixou abalar. “Sou uma pessoa negra e crespa. Onde chego, chamo atenção. Tem gente que diz ‘seu cabelo está alto’ ou acha que eu não penteei o cabelo, não entendem que essa é a estrutura do fio”, conta. Micheline conta que a mãe dela é branca e também não entendia isso, principalmente quando ela parou de usar chapinha.
“Quando uma marca de beleza resolveu me patrocinar, ela perguntou: a empresa gosta do seu cabelo assim ressecado? Só que não é ressecado, o fio crespo é assim. Se eu não tivesse tido força para enfrentar isso, não teria assumido meu cabelo”, relata. Com o tempo e o reconhecimento, a mãe de Micheline entendeu isso. Em outras ocasiões, as pessoas achavam que ela deveria ganhar menos pelo trabalho.
“Uma blogueira me perguntou por que eu cobrava determinado valor e não um menor como modelo. Eu expliquei: há uma gama de modelos brancas e claras no mercado, mas onde iam achar um cabelo desse, uma pele dessa, um corpo desse?” Casada há nove anos, Micheline conta que o marido foi fundamental para reconstruir sua autoestima, o que permitiu que ela passasse a ajudar outras pessoas nesse sentido.
Lado social
Antes de viver exclusivamente do empreendedorismo, Micheline trabalhava como assistente administrativa terceirizada num ministério, função que deixou quando teve câncer no colo do útero. Hoje, ela está em remissão. As sequelas não permitem que ela fique oito horas sentada, então, encontrou nas redes sociais uma maneira de se reinventar. Ela já era ativa como influenciadora digital e compartilhava o tratamento com os seguidores.
Micheline usa a influência, hoje, não só para o próprio negócio, mas, também, para ajudar outras pessoas. Com doações de seguidores e marcas, por exemplo, está reconstruindo a casa de um morador de Samambaia que pegou fogo. O que começou como a ideia de construir um quarto ganhou uma proporção muito maior, com direito a serviço de arquiteto. Ela também presta um trabalho social dando aulas de maquiagem na Caravana da Juventude Negra, que tem apoio da Secretaria de Turismo.
Impacto social
Ana Lídia Araújo*
Mais do que ser uma hamburgueria, a Singelo Burguer foi idealizada para ser um projeto de relevância social. É o que diz o ex-articulador de eventos sociais e fundador do negócio, Otávio Damichel, 29 anos. Ele criou a empresa no quintal de casa, em Ceilândia, em 2016. Sem emprego e sem perspectivas de encontrar uma recolocação, o jovem usou as economias da rescisão para investir no próprio negócio.
“Foi uma tentativa de sobrevivência mesmo, com tudo improvisado e coisas emprestadas dos amigos”, conta. “Começou a dar certo, então usei a internet para estudar o ramo, experimentei produtos e fui me aprimorando”, diz. Depois, com uma sede, a iniciativa ganhou espaço e reconhecimento em Taguatinga.
Cerca de seis meses após a abertura, Otávio fechou sociedade com a amiga de longa data Suávia Gimenes, 38, e, juntos, eles levaram a loja para a QNJ, em Taguatinga. “Somos quase irmãos de consideração. Ela estava chegando a Brasília sem emprego e queria investir em alguma coisa”, relembra Otávio.
Para o empresário, a hamburgueria foi um divisor de águas. “Sou um homem preto, vim da periferia de São Paulo e morei na favela a vida inteira. A Singelo me deu a oportunidade de empregar pessoas, de estar à frente de um negócio lucrativo e mudar a perspectiva do que é o papel do negro na sociedade”, diz.
“Assim como todos os negros em nosso país, já fui vítima do racismo e do preconceito. No entanto, não gosto de me colocar somente com essa imagem: sou, também, um homem vitorioso, que, apesar de todas as barreiras, conseguiu vencer com o trabalho.”https://4b74912498f4ac2b9284fc13082b7de3.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
Identidade da empresa
Durante a pandemia, o negócio tem enfrentado adversidades. Com o fechamento da loja e as restrições de convívio social, metade da equipe foi desligada e novas estratégias precisam ser tomadas, como mudanças no cardápio e o fortalecimento do delivery, que não era uma prioridade.
“Nosso foco era o salão e o atendimento presencial, mas fomos forçados a fazer essa transição e trabalhar com isso da melhor maneira possível.” Mesmo com as dificuldades, o período em que a loja ficou fechada para o público foi aproveitado. Em parceria com o grupo Coletivação, a Singelo Burguer produziu centenas de refeições para moradores de rua de Ceilândia.
O empresário conta que servir a sociedade de alguma maneira faz parte da identidade da empresa. “Quando tínhamos uma equipe grande, nós sempre optamos por ter um quadro equilibrado entre homens e mulheres, com pessoas LGBTQI+, e já empregamos pessoas em situação de rua. Nós acreditamos em fazer a diferença com as ferramentas que temos à nossa disposição”, diz.
A hamburgueria lançou o concurso de beleza negra Simpatia Preta, cujo resultado foi divulgado na sexta-feira (20), e a vencedora ganhou ensaio fotográfico, maquiagem, penteado e R$ 300 em consumação na loja. “Nossa ideia com esse projeto é trabalhar a autoestima do negro e aproveitar o mês da consciência negra para dar mais visibilidade a isso”, explica.
Turismo sem preconceito
Natural de Nova Iguaçu (RJ), Carlos Humberto da Silva Filho, 41 anos, é CEO da Diáspora.Black, startup de impacto social de turismo, cultura negra e treinamentos. A empresa promove cursos e oficinas para empresas desenvolverem padrão de qualidade para o consumidor negro e para comunidades ribeirinhas e quilombolas desenvolverem turismo de base comunitária.
É também um canal para que pessoas reservem hospedagem livre de preconceitos. A plataforma também oferta experiências que contam a história da comunidade negra, por meio de roteiros gastronômicos, vivências em comunidades tradicionais como a Kalunga, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Desde 2017, foram mais de 4 mil turistas atendidos em 15 países.
“Nós recebemos feedbacks positivos todos os dias. Um muito forte foi de uma senhora branca de classe média de São Paulo. A filha dela foi morar em Nova York e ela buscou acomodação na nossa plataforma porque acreditou que as pessoas que oferecem hospedagem ali poderiam garantir segurança e respeito”, diz. A ideia surgiu em 2016, a partir de problemas que Carlos enfrentou na própria casa.
Ele morava num apartamento com vista para a praia no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. “Como eu viajava muito, comecei a alugar um dos quartos com a perspectiva de compartilhar aquela experiência e passei a enfrentar racismo. As pessoas duvidavam que eu fosse o anfitrião e um casal até se negou a se hospedar ali quando viu que eu era negro”, conta.
Reação
Quando era criança, a família de Carlos ficou sem casa e foi acolhida por um terreiro de umbanda. Por isso, ele era acostumado a ver no lar um lugar de compartilhamento. “Nessa experiência, aprendi valores de acolhida, cooperativismo, ancestralidade que trago para a Diáspora até hoje. Casa para mim era algo sagrado”, conta. Por isso, ser desrespeitado nesse espaço foi a gota d’água.
Ele teve experiências de racismo em outros contextos relacionados ao turismo, como quando as reservas dele demoravam a ser encontradas no hotel, ou quando ele voltava de um jantar e os seguranças questionavam se ele era hóspede sem fazer a mesma pergunta para turistas brancos. Juntando essa vivência ao desrespeito na própria casa, ele percebeu a necessidade de ter um serviço como o Diásporas.Black.
O site permite que pessoas ofereçam opções de hospedagem em casas, hotéis e resorts que sejam livres de preconceito. A outra linha é a oferta de treinamentos. O interesse pelo turismo já existia em Carlos antes de empreender: na infância e na adolescência, o deslocamento para a praia era muito difícil. “Aos 11 anos, comecei a organizar excursões com a minha tia, atendendo pessoas da comunidade”, lembra.https://4b74912498f4ac2b9284fc13082b7de3.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
Carlos estudou geografia e meio ambiente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), integrando a primeira turma de bolsistas de programa de ações afirmativas. Também com bolsa, durante a graduação, fez um intercâmbio na Universidade Harvard. Como profissional, atuou em grandes corporações, como Canal Futura, Fundação Roberto Marinho, Vale. Hoje, a Diáspora.Black tem sede em São Paulo e uma equipe de nove pessoas.
Facebook capacita negros
Estimativa do Instituto Guetto, a partir da Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do primeiro trimestre de 2020, mostra que a presença de pessoas empregadas no mercado publicitário é de 4,4% entre pretos e de 21,5% entre pardos. Para mudar esse cenário, surgiu o Potência Preta, novo programa de capacitação do Facebook. O objetivo é capacitar 600 jovens da comunidade negra nas áreas de marketing digital e marketing. Os cursos começam nesta segunda-feira (23/11) e seguem até dezembro. A iniciativa é uma parceria com o Instituto Guetto e Indique uma Preta, com apoio do Afro Hub e da Cufa (Central Única das Favelas). Inscrições e informações: fb.me/ RiseFB.
Afro Hub
É com o intuito de fortalecer e estimular o ecossistema de afroempreendedorismo no Brasil que existe o Afro Hub, programa de capacitação técnica e networking criado em 2018. Organizado por Diáspora.Black, Feira Preta, Afro Business, o projeto tem apoio do Facebook para expansão digital.
Carlos Humberto da Silva Filho, CEO da Diáspora.Black, entende as dificuldades próprias dos empreendedores pretos e pardos. “Ser negro, independentemente da sua posição social, traz muitos desafios que, às vezes, os próprios negros podem não perceber, mas existem”, afirma. “A saga do empreendedor negro é cheia de obstáculos para acessar ferramentas e tecnologias e, inclusive, crédito.”
Por isso, ele se tornou um dos criadores do Afro Hub. “O Facebook ‘comprou’ o projeto e nós, os criadores, nos tornamos as organizações que o implementam”, explica. A importância de apoiar negócios de pretos e pardos vai além das empresas em si. “O empreendedor negro mobiliza e potencializa a economia de famílias negras e do Brasil.”
Os desafios a mais da mulher negra
Os empreendedores negros foram os mais impactados pela pandemia e, entre eles, as mulheres, as mais prejudicadas, de acordo com pesquisa do Sebrae. As empresas lideradas por pretas e pardas são a maior proporção entre as que ainda permanecem com a atividade interrompida, têm maior dificuldade de funcionar de forma virtual e são as que mais tiveram crédito bancário negado em razão do CPF negativado.
Entre 25 e 30 de junho, enquanto 36% das empreendedoras negras estavam com a atividade interrompida temporariamente, essa proporção caía para 29% entre as empresárias brancas e para 24% entre os homens brancos; entre os homens negros, essa proporção é de 30%.
Adriana Barbosa, 43 anos, é fundadora do festival de cultura negra Feira Preta, outra instituição responsável pelo Afro Hub. Ela percebe que o acesso à tecnologia, a maquinário, a crédito e à formação ainda é o grande desafio dos empreendedores negros, apesar dos avanços dos últimos anos. Mais pessoas passaram a se entender e a se declararem como pretas e pardas, mas o racismo persiste também no meio empreendedor.
“Faz parte do cotidiano do empreendedor negro, por exemplo, ser questionado na entrada de eventos e em diversas outras situações”, diz. Ela própria enfrentou e enfrenta preconceito tanto de raça quanto de gênero. “Sentada numa mesa de reunião, me perguntaram se a Adriana viria para o encontro”, relata.
Principalmente no início, ela via que muitas empresas não queriam se associar a um evento chamado Feira Preta. “Chegavam a pedir para eu mudar o nome da feira”, conta. Enfrentar a discriminação é pesado. “Eu lido como uma pessoa preta lida. Faço terapia há muitos anos, o que me ajuda a me abrir para o campo do diálogo e não do embate”.
Adriana foi eleita, em 2017, uma das 51 pessoas negras mais influentes do mundo no ranking Mipad (Most Influential People of African Descendent, ou pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo). A Feira Preta tem 18 anos de história e gerou frutos que apoiam outros empreendedores negros: a instituição conta com um instituto homônimo e com o Preta Hub, que oferecem capacitação técnica e criativa e funcionam como aceleradora e incubadora do empreendedorismo negro no Brasil.
36%
Percentual das empresas lideradas por mulheres negras com o funcionamento interrompido
27%
Parcela de empreendedoras negras cuja empresa só funciona presencialmente
58%
Índice de mulheres negras que buscaram um empréstimo e não conseguiram obter o créditohttps://4b74912498f4ac2b9284fc13082b7de3.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
25%
Proporção de empreendedoras que receberam “não” do banco por CPF negativado
Fonte: Sebrae
Por mais visibilidade
Fundadora do Instituto Afrolatinas e do Festival Latinidades, Jaqueline Fernandes, 40 anos, é uma grande parceira para a implementação do Afro Hub em Brasília. Jornalista, pesquisadora, produtora e gestora cultural, foi subsecretária de Cidadania e Diversidade Cultural, na Secretaria de Cultura do Distrito Federal.
As barreiras para empreender como mulher negra, observa Jaqueline, são imensas. “Elas são arrimo de família dentro das periferias, responsáveis por filhos, irmãos, pais… São mulheres com um desafio enorme de serem provedoras enquanto enfrentam racismo”, diz a moradora do Varjão.
“Todo esse percurso pelo qual a gente passa ao longo da vida tem traumas e barreiras, mas, também, tem elementos de força que só nós temos. Isso gera um empreendedorismo específico das mulheres negras, uma potência que, sem autoconhecimento, não é descoberta”, afirma.
Foi com essa força que Jaqueline e a produtora Chaia Dechen criaram, há 13 anos, o festival de mulheres negras Latinidades, que celebra o Dia Internacional da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, em 25 de julho. “Ele nasceu do incômodo da invível e da falta de espaço para artistas negras”, lembra. O evento, que começou em Brasília, tornou-se nacional e internacional. Antes de criarem o festival, Jaqueline e Chaia abriram uma produtora em Planaltina para artistas negros.
“Pensamos que poderíamos contribuir para mudar o cenário ao ajudar a formar artistas da cidade, com clipe legal, produção executiva…” Elas atendiam mais de 20 artistas e perceberam que o trabalho qualificado não adiantava porque a falta de espaço era causada pelo racismo. A partir daí, surgiu um festival para dar a visibilidade que faltava, com foco na mulher negra.
O evento chegou a reunir 50 mil pessoas no Museu Nacional. “Foi uma maneira de colocar pessoas negras para circular na Esplanada, onde, muitas vezes, elas não circulam a não ser como subalternas, como a tia do café ou o segurança”, comenta Jaqueline. Com o tempo, surgiram outros festivais de mulheres negras em Brasília e muitos avanços foram conquistados. Agora, porém, observa Jaqueline, em vez de “avançar, é preciso cuidar do que já foi conquistado”, pois existem riscos de retrocessos.
Apoio e mentorias
Durante a pandemia, por meio de parcerias com outras instituições, o Afrolatinas abriu editais de apoio emergencial. Por meio de um dos editais, entre mais de 1.500 inscrições do Brasil e de 10 países da América Latina, 68 empreendedoras foram apoiadas com R$ 1.310 cada, além de mentorias. Outro edital com foco em gastronomia apoiou 33 mulheres com cartões de R$ 1.000.
Durante a mentoria, as empreendedoras aprendem não só sobre estratégias de negócio e digitalização, mas, também, sobre ancestralidade africana e autoconhecimento. “A gente está acostumada a ver a história do povo negro contada pelo lado da escravidão e do fracasso, mas os nossos ancestrais já existiam antes disso e deram contribuições para a ciência e a humanidade. Mostramos isso para as pessoas se sentirem herdeiras disso tudo”, explica Jaqueline.
A instituição busca apoio para construir, no Varjão, a Casa Afrolatinas, um espaço de cyber cultura dedicado às mulheres negras e às comunidades periféricas do Distrito Federal. A cada R$ 1 investido pelo público, o Fundo Enfrente investirá mais R$ 2. Para ajudar nessa ação de multiplicação, acesse a vaquinha on-line: www.benfeitoria.com/casaafrolatinas.
Herança valorizada
Entre as beneficiadas de um dos editais do Instituto Afrolatinas está a estudante de fisioterapia Isabel Barcelos, 38 anos, que oferece tratamentos estéticos e contra a dor não invasivos, como limpeza de pele, drenagem linfática, ventosas, entre outros. Ela era proprietária, há 13 anos, da Bel Barcelos Estética em Planaltina e, em meio à pandemia, arranjou uma sócia e mudou o negócio para o Colorado, há um mês.
A Estética Colorado fica a cerca de 30km da anterior, mesmo assim, clientes de Isabel a seguiram. Para ela, a pandemia foi “extremamente desesperadora”, por isso, o apoio e a mentoria foram fundamentais. “Eu consegui fazer um curso de uma nova versão de microagulhamento. Sem essa ajuda, eu só pagaria contas.” Para ela, aprender sobre a ancestralidade africana foi um grande ganho.
Isabel sofreu bullying por conta do nariz e pela boca ao longo da vida. Em alguns dos episódios, uma cliente disse que ela não tinha “cabelo de esteticista” e, durante um curso de harmonização facial, um instrutor chegou a perguntar se Isabel não queria afinar seus traços. “Eu me identifico com as minhas características. O meu nariz tem toda uma herança”, diz.
Empoderamento
Isabel diz que, por não ser “negra retinta”, não sofreu formas de racismo mais cruéis, porém, incômodos com seus traços e seu cabelo sempre existiram. “Quando eu trabalhava para os outros, eu perdia oportunidade para pessoas brancas”, relata. O empoderamento de se valorizar começou após os 30 anos. “Hoje, amo meu cabelo e amo como sou. Não vale a pena sofrer para entrar num padrão que não é nosso. Antes, tentei me embranquecer, chegou a um ponto em que eu cansei de tentar ser quem não sou.”
A mentoria também ajudou a empreendedora a sonhar mais alto. “A mulher negra e periférica tem desvantagens enormes, tudo para a gente é mais difícil, a gente vive tirando de um buraco para cobrir outro. Minha perspectiva antes era só cobrir o aluguel e minhas contas”, conta. “Hoje, para os meus planos, o céu é o limite.”
Resgate da autoimagem
Cristiane Matos, 36 anos, é bancária e consultora de imagem para mulheres que desejam ter um guarda-roupa autêntico e otimizar seu estilo de vida. A primeira carreira começou há 14 anos e a segunda, formalmente, completa um ano em dezembro. Graduada em gestão de pessoas com MBA em gestão empresarial, começou a repensar a trajetória ao fazer a pós-graduação e, assim, decidiu empreender.
A primeira tentativa foi com a gastronomia: ela fez curso na área e queria abrir um bufê personalizado. Chegou a comprar equipamentos e fazer pesquisa de mercado. Ao montar a equipe, acabou desanimando quando um dos colaboradores desistiu. A vontade de empreender e de fazer algo diferente, porém, não desapareceu. Depois de obter uma certificação de UX designer (voltado para a experiência do usuário), foi voluntária numa associação internacional de design.
“Fiquei com a pulga atrás da orelha e pensando: tenho que abrir algo para mim”, conta. Então, Cristiane passou a revender roupas que comprava em São Paulo. A partir daí, fez cursos de personal stylist e consultoria de imagem no Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e participou, também, de capacitações em São Paulo. Quando passou a atuar como consultora, Cristiane parou de vender roupas.
Hoje, ela atende num ateliê na Asa Sul, mesmo setor onde mora. Entre os serviços que oferece, além da consultoria de imagem, estão análise de coloração e análise facial (uma evolução do visagismo). “O visagismo vem da indústria da beleza com o objetivo de fazer com que as pessoas fiquem bonitas dentro do padrão imposto pela sociedade. O que eu faço não é isso”, explica. “Faço uma análise não para mudar traços da pessoa, mas para valorizar o que ela já tem.”
Cristiane entende que a sociedade é machista e preconceituosa e passou por uma jornada até parar de alisar o cabelo. “Nasci num ambiente de salão. Para mim, aquilo era bonito, eu não questionava. Após tudo que entendi, não posso continuar na mesma vibe”, diz. Durante a pandemia, a consultora percebeu que precisa ter, também, produtos digitais, algo que ainda está formatando.
Depois da flexibilização do distanciamento social, ela voltou a fazer atendimentos presenciais, com regras de segurança: atende apenas uma pessoa por período e higieniza o local e todos os equipamentos entre um cliente e outro. A maior parte das freguesas de Cristiane é formada por mulheres brancas. Ela atende mais mulheres negras por meio do projeto social cristão Bela e Valiosa, um workshop gratuito de resgate da autoestima.
Afro-brasileira, empreendedora e ativista
Outra beneficiada por um edital do Afrolatinas é Aline Karina Dias, 31 anos, graduada em turismo e mestranda em patrimônio cultural. Ela é dona de dois negócios voltados ao turismo: Sebas Turística (focada em turismo de base comunitária nas regiões administrativas do DF) e Circuito Cerrado Ecoturismo (de vivências na natureza e valorização cultural). Com a primeira empresa, oferece passeios por regiões como São Sebastião, onde morou por 10 anos.
Foi com foco nesta cidade que Aline elaborou o projeto-piloto do negócio, mapeando 100 pontos turísticos de diferentes categorias. Os passeios, em geral, são feitos por turmas escolares. Algumas das rotas oferecidas pela segunda empresa são a Raízes da Memória (imersão com viagem e hospedagem no quilombo Kalunga) e Rota da Caliandra (trilha pelo cerrado com cachoeira). Durante a pandemia, os negócios foram impactados e, agora, ela começa a retomar os passeios presenciais.https://4b74912498f4ac2b9284fc13082b7de3.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
Durante os meses de maior distanciamento social, Aline trabalhou com tours virtuais, em que apresentou, por meio de videoconferência, pontos turísticos usando mapa, banco de imagens e vídeos. “No começo, teve mais procura, bombou e consegui ter retorno financeiro. Agora, as pessoas devem estar cansando de ficar em frente da tela”, comenta. Aline usou parte do fundo recebido pelo edital para investir em marketing e compra de equipamentos, como uma câmera. As aulas e mentorias foram importantes para aprender a perder vergonha de aparecer nas redes sociais.
“Isso é importante para vencer essa barreira da invisibilidade. O fundo Éditodos me mostrou que eu preciso quebrar crenças limitantes para me tornar visível”, conta. “Eu aprendi que é importante me colocar como afro-empreendedora”, diz. “Como mulher negra, periférica e empreendedora, a gente é sempre posta em xeque. Duvidam do meu potencial e das minhas empresas.” Os piores casos de racismo, a empreendedora sofreu por parte de homens brancos, como o caso de um professor que se apropriou de uma pesquisa dela e, no ano seguinte, foi acusado de racismo por três alunas.
“Trabalhar para mim”
Quando se graduou, Aline percebeu clara diferença na inserção empregatícia entre ela e recém-formados brancos. “Tive vivências racistas e perversas ao sair da universidade. Meus colegas brancos conseguiram emprego em hotéis, cruzeiros, alguns viraram gerentes. Eu, mesmo com diploma, só consegui trabalhar com turismo rural numa fazenda”, relata. “Trabalhei como se fosse uma funcionária sem diploma, do nível de lavar prato e limpar cozinha. Trabalhávamos fazendo hora extra sem receber e sendo humilhados”, recorda.
Assédios, racismo e violências fizeram com que Aline passasse a ter “ranço” de trabalhar para os outros. “Por mais difícil que seja empreender, eu queria trabalhar para mim.” Apesar das dificuldades e da discriminação, ela conta que sempre teve “sorte” com os clientes. “Acabei atraindo um público mais do ativismo político e acadêmico, que é maravilhoso e tem respeito e troca comigo”, elogia ela, que é, também, conselheira do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC-DF) e presta serviço de consultoria de projetos.
Aline mora em Ceilândia, no quilombo urbano Casa Akotirene, do qual é vice-presidente. “Nos organizamos socialmente para discutir uma nova forma de sociedade, trazendo consciência racial e expandindo o quilombo para uma perspectiva cosmopolita”, explica. O local tem 10 moradores fixos e oferece ações sociais para negros. Durante a pandemia, o grupo distribuiu cestas básicas e produtos de limpeza, além de promover terapia para a população preta e parda.
Datas marcantes
O Dia Mundial do Empreendedorismo Feminino foi comemorado na última quinta-feira (19/11) e o Dia da Consciência Negra foi na sexta-feira (20/11).
Estágio inclusivo
Estão abertas, até 30 de novembro, as inscrições para o programa de estágio da operadora TIM. São mais de 300 vagas e 50% delas são direcionadas para participantes negros. As vagas são para Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Curitiba e Belém. Podem participar estudantes de qualquer graduação, as bolsas variam entre R$ 1.350 a R$ 1.500. Inscrições:
Fundo do Google
A Google for Startups Brasil anunciou, na sexta-feira (20/11), seis novas empresas selecionadas para receberem a segunda leva de investimentos do Black Founders Fund, fundo de investimento destinado a startups fundadas e lideradas por negros no Brasil lançado em setembro. São elas: Aoca Game Lab, LegAut, EasyJur, WeUse, Treinus e Wellbe. Os negócios foram escolhidos por estarem aptos a crescer e promover mudanças significativas em suas comunidades.
Com essas startups, o total de empresas que receberam investimento do Black Founders Fund em 2020 chega a nove. A expectativa do Google for Startups Brasil é chegar a 30 até o fim de 2021. O fundo foi criado para investir um valor inicial de R$ 5 milhões. O investimento é feito sem contrapartida. A iniciativa conta ainda com duas instituições colaboradoras, Vale do Dendê e Preta Hub, que indicam empresas que acreditam terem potencial e preparo para receber o capital.
Essas instituições também atuam ao lado do Google for Startups para oferecer sessões de treinamento para mentores e realizar fóruns sobre diversidade racial para engajar líderes e players importantes da indústria de tecnologia. Saiba mais sobre o fundo no link: campus.co/intl/pt_ALL/sao-paulo/black-founders-fund.
Conheça as empresas selecionadas:
» Aoca Game Lab: empresa baiana de desenvolvimento de games independentes, como o jogo para PC Árida, que conta a história de uma garota que vive uma jornada de descoberta no sertão brasileiro do século 19. Acesse: