A Pandemia e a Anomia

Maria José Rocha Lima* 

É inegável o caráter emancipatório que guarda o uso da internet, no âmbito da educação, mas, se isso não ocorrer com a igualdade do acesso, corremos o risco da criação de novos super homens, contra uma legião de pobres destituídos da condição de sobrevivência e inúteis.


A parcela da população que frequenta a rede pública parece vivenciar uma situação de anestesia. Um silêncio ensurdecedor é manifestado por alunos e pais das escolas públicas. Os gestores municipais e estaduais vão surfando na onda pandêmica, sem incômodos.


 Diferentemente do que fizeram os proprietários das escolas da rede privada, na qual foram contratados consultores do topo das empresas de tecnologia (CEO, CTO, CCO, e demais Chief Executive Officer), para resolver o ensino remoto nas escolas privadas.


 Na rede pública, a essa altura, era para já terem realizado os mesmos movimentos, criado canais comprados horários nas televisões para todas as séries, ou  alugado canais de televisão, uma vez que este é o veículo de maior alcance, em todas as classes sociais.  A escola brasileira está tão ruim, que parece não fazer falta aos alunos e pais. Os pais sofrem apenas por não terem quem os guarde, um depósito público enquanto trabalham.  Não há um movimento, uma pressão pelo ensino ao aluno. Não se vê um legítimo sentimento de perda, perder o quê? Nessa escola pública que não cumpre a sua função precípua, que é ensinar?  


Causa estranheza a indiferença ou pouca reclamação das 57 milhões de pessoas matriculadas nas escolas e universidades públicas e privadas. Quase 50 milhões de crianças, jovens e adultos são matriculados na rede pública. Imaginemos que isto representa 1/4 da população brasileira, sem contar com as pessoas que estão em volta desses 50 milhões de matriculados.


 Chama-nos atenção a resignação desses segmentos da sociedade, que não comparecem com muita força nas mídias sociais; com movimentações pela garantia das aulas remotas de qualidade, pela volta no próximo ano, com horário integral para tirar o atraso, principalmente na alfabetização, que se constitui um nó górdio. Em maio de 2018, na Comissão de Educação do Senado, o ex- ministro da Educação Rossieli Soares informou que mais de 50% das crianças não estavam alfabetizadas no 3º ano do ensino fundamental, aos 8 anos.

Nas regiões Norte e Nordeste, esse percentual chegava a 70% de crianças não alfabetizadas. Na mesma audiência, o ministro apresentou dados que revelavam que, na última década, as taxas de insucesso mantiveram-se elevadas nos 3º, 6º e 9º anos e durante os três anos do ensino médio.

No ensino médio, os jovens aprendem menos português do que aprendiam há 20 anos. O ministro apresentou dados preocupantes: 340 mil crianças foram reprovadas ou abandonaram a escola no terceiro ano do ensino fundamental, em 2016. No 6º ano, 570 mil crianças foram reprovadas ou abandonaram a escola. E no 1º ano do ensino médio, 791 mil jovens foram reprovados ou abandonaram os estudos.


Diante dessa realidade tão preocupante, a sociedade segue manifestando uma anomia, como conceituava o sociólogo francês Émile Durkheim. Anomia para ele queria dizer ausência ou desintegração das normas sociais. O conceito surgiu com o objetivo de descrever as patologias sociais da sociedade ocidental moderna, racionalista e individualista, com o seu acelerado processo de urbanização, a falta de solidariedade, as novas formas de organização das relações sociais e a influência da economia na vida dos indivíduos.  

 
O tema central das obras deste autor é a relação entre o indivíduo e a coletividade: o que diferencia uma coleção de indivíduos de uma sociedade? Como se constrói o consenso? O que das ações individuais é determinado pela coletividade? Tentar responder a estas perguntas é o objetivo de muitas de suas obras, como “A divisão do trabalho social” e “O suicídio”.


Para o autor, “a única força capaz de servir de moderadora para o egoísmo individual é a do grupo; a única que pode servir de moderadora para o egoísmo dos grupos é a de outro grupo que os englobe” (DURKHEIM, 2010, P. 428).


Menos do que conformismo, a anomia dos brasileiros pobres, que frequentam a escola pública, dá  uma forte impressão de desilusão em relação a essa escola pública que não ensina, defendida apenas por quem não a utiliza.
 

*Maria José Rocha Lima é mestre  e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 a 1999. É presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. Psicanalista e diretora da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise.