Brincar e interagir são os dois principais eixos da educação infantil. Quem traz a definição é o professor Vital Didonet, especialista em primeira infância, com um extenso currículo ligado ao tema. E vem dele uma proposta: precisamos tirar lições da dolorosa experiência trazida pela pandemia, e uma delas é valorizar ainda mais a escola como espaço de aprendizagem.O ensino remoto evidenciou o papel educacional e pedagógico das escolas, muito além do cuidar e do proteger. Encontrar as unidades fechadas acentuou o sentimento de pertencimento das crianças ao espaço. “A pandemia abriu no imaginário social uma atitude de admiração e de respeito à escola e maior compreensão de quanto ela é imprescindível, como agência social e educacional”, reflete o pesquisador em recente artigo.Nesta entrevista concedida ao Porvir na semana em que se comemora o Dia Nacional da Educação Infantil (25 de agosto), Vital comenta sobre os esforços que devem ser feitos neste retorno às aulas, como a busca ativa pelas crianças, sugere como professores e alunos devem ser apoiados em suas questões socioemocionais e o apoio aos professores e aos alunos nas questões socioemocionais, além da relação fundamental entre família e escola para o desenvolvimento da primeira infância. Confira:
Porvir – Como sugerir aos pais e cuidadores que tenham essa prioridade, que vejam no brincar e no interagir uma potência de aprendizado? Vital Didonet – Por causa da pandemia, vimos um aumento da conexão entre as famílias e as escolas. Isso deveria continuar, com conversas mensais sobre pedagogia, as questões comportamentais, mostrar para os pais como brincar, e os pais mostrarem como é a experiência doméstica. O brincar é uma oportunidade de experimentar a solução de um problema, é uma provocação para a criança testar a sua capacidade de resistência, de paciência, ter mais estabilidade. Montando um quebra-cabeças, ela trabalha a capacidade de raciocínio: vê peças que não se encaixam, conversa com o colega sobre o formato diferente. O brincar é uma coisa divertida, desenvolve a capacidade de observação e raciocínio, criatividade. É algo muito rico.
Porvir – Estamos em ano eleitoral. Como os candidatos devem olhar para a primeira infância? Vital Didonet – Na RNPI (Rede Nacional de Primeira Infância), nós fazemos uma campanha de abordagem aos candidatos para que eles assinem um compromisso: se eleitos, colocarem em suas agendas a prioridade para pensar na primeira infância. Quando eleitos, voltamos aos que assinaram para oferecer subsídios para colocar as propostas em prática. Este ano, a Rede Nacional passou a integrar, com mais de 20 organizações da área da educação, saúde, assistência e cultura, a Agenda 227. O nome do projeto se refere ao artigo da Constituição, no qual se afirma que a família, a sociedade e o estado devem garantir, com absoluta prioridade. Essa agenda é enviada aos candidatos para que, ao formularem o plano do seu governo, tenham isso em mente. No âmbito estadual, pela RNPI, lançamos, na semana passada, o projeto “Criança é prioridade”.
Porvir – Qual seria um projeto obrigatório para qualquer plano de governo para apoiar e valorizar a educação infantil?Vital Didonet – É fundamental cumprir a meta 1 do PNE (Plano Nacional de Educação), que aponta 100% das crianças de 4 e 5 anos na escola e, no mínimo, 50% das crianças de 0 a 3 anos em creches. Coloca-se essa porcentagem mínima, mas no caso de São Paulo, por exemplo, a demanda é muito maior. Sabemos das filas imensas de espera por vaga na creche… Outro ponto é dar uma atenção qualificada para as crianças com deficiência, colocando-as em escolas inclusivas, com profissionais qualificados. Também precisamos diminuir a diferença de frequência das crianças de classe mais alta e das famílias mais pobres.
Porvir – Como isso pode ser feito?Vital Didonet – Essa também é uma estratégia que está no PNE. Se você olha o gráfico ou os números de matrícula na pré-escola, por classe e renda, o grupo de 20% das famílias mais pobres, apenas 27% dos seus filhos estão na creche. Se você seleciona os 20% das famílias mais ricas, o número de matrículas é de 67%. A creche amplia as experiências e as oportunidades de aprendizagem, movimento, interações e a linguagem da criança, e está ajudando as famílias das classes mais altas e não ajudando tanto as classes mais pobres. Estamos agravando a desigualdade no Brasil. Na primeira infância é que se forma a estrutura do desenvolvimento ao longo da vida. É quando o cérebro está se estruturando, o psiquismo se forma, a personalidade da criança está se constituindo. Se nesse período mais sensível, mais maleável do cérebro, o que se chama de janela de oportunidade está aberto apenas para crianças de renda mais alta, porque elas estão indo para essas oportunidades educacionais, elas vão dar um salto em relação às outras. O Estado tem de garantir a igualdade de oportunidades, priorizando a expansão das creches nos territórios onde moram as famílias mais pobres.
Porvir – A educação infantil é fundamental para a formação do ser humano, mas a modalidade ainda sofre algumas críticas. Qual sua opinião a respeito?Vital Didonet – Olha, a gente não vê resistência. O discurso sobre a importância da primeira infância e os estímulos adequados estão presentes no âmbito da pedagogia, da psicologia e até da economia. Hoje se usa muito o argumento da taxa de retorno. O James Heckman, prêmio Nobel de Economia, tem uma tese sobre quanto o que se gasta na educação infantil tem benefícios ao longo da vida, com um retorno econômico tão alto que compensa dez vezes mais do que cuidar dos adultos que não tiveram educação infantil. A importância do cuidado integral, da saúde, assistência, cultura, meio ambiente, está muito presente nos âmbitos dos serviços públicos essenciais para a criança. Outra coisa é partir desse discurso para a prática.
Porvir – Isso tem sido realizado?Vital Didonet – Na hora de criar orçamentos e colocar recursos para a educação infantil, o MEC (Ministério da Educação) pensa que R$ 200 milhões é muito dinheiro, mas não pensa que R$ 5 bilhões para a campanha eleitoral não são suficientes. Ano passado, o MEC destinou R$ 120 milhões para a educação infantil; neste ano, foram R$ 240 milhões. O que é esse valor para 5.560 municípios e 20 milhões de crianças na faixa de 0 a 6 anos? Essas decisões mostram como a mente do gestor é obtusa, como é a mente dos que decidem orçamento ou que têm uma compreensão do significado da primeira infância. Trata-se de uma questão de a criança ter direito à educação de qualidade desde o nascimento, que enriqueça suas experiências de vida, independentemente de dar taxa de retorno ou não.
Porvir – Sem contar a falta de recursos para a formação dos professores e para estrutura escolar…Vital Didonet – Exatamente. Já está definido desde o Congresso de Salamanca, por exemplo, que a melhor educação para a criança com deficiência é na escola inclusiva. Nesse atual governo, o ministro da educação começou a estimular as escolas especiais, separadas, para que as crianças com deficiência fiquem juntas, e não misturadas com as outras, onde têm muito mais possibilidade de brincar e de aprender com a interação. Veja o retrocesso conceitual por desconhecimento da pedagogia mundial, de 40 anos já. Uma coisa é o discurso da escola inclusiva, e outra coisa é na hora da prática, valorizar isso. Mesmo quando se fala em colocar a criança na escola comum, não se investe na formação de professores. Os pais dizem: “Como é que vou colocar meu filho autista aqui, se não há ninguém que sabe envolvê-lo nas atividades?”. Ele se fecha em um canto e o professor não sabe o que fazer, ou ele é agressivo, então o professor o isola, enquanto existem técnicas de interação que o especialista sabe trabalhar bem. Ou não colocam psicólogo na equipe da secretaria de educação para orientar os professores nessa convivência com as crianças. Uma coisa é a concepção e a outra é a coerência prática, que está faltando. Mas esperamos que as coisas possam mudar. Seguiremos lutando por isso. Fonte: povir.org*
publicado originalmente por: https://planaltoempauta.com.br/a-escola-tem-muita-coisa-bonita-para-ensinar-a-crianca/