Roberto Mendes, 66 anos, é um pesquisador, professor, cantor, compositor, dublador, violonista e arranjador nascido em Santo Amaro, na Bahia, onde mora até hoje. Após nove álbuns gravados – já está providenciando o décimo – este artista é reconhecido tanto por seu talento musical, demonstrado através dos gêneros MPB, chula, samba de roda e ijexá, quanto pela beleza de suas composições, muitas das quais foram eternizadas na voz da cantora Maria Bethânia, sua conterrânea. Inspirado pela rica cultura do Recôncavo Baiano, este artista chama a atenção também pelo aprofundamento dos estudos culturais que desenvolve, alguns deles traduzidos em livros e DVDs. Além disso, Roberto já participou algumas vezes do Carnaval baiano, até mesmo puxando blocos, com ritmos do Recôncavo, obviamente. Diante deste currículo, a ACEB não teve dúvidas em quem convidar para abordar o tema “A música como instrumento de formação da cidadania”. Confira a entrevista:
ACEB – Você deixou o ensino da matemática para dedicar-se à música. Foi fácil tomar esta decisão? Quais foram suas motivações na época?
ROBERTO MENDES – Ensinei em Santo Amaro, na Escola Teodoro Sampaio e em Acupe (Escola da Comunidade), cuja diretora era a professora Marieta Barreto. Desde menino, eu tocava violão, mas descobri minha paixão pela música tocando viola no fundo da Escola, ao lado de Seu Tuni (violeiro). Foi com ele que aprendi a tocar violão como percussão ferida. Fiz um Festival de Música com Raimundo Sodré em 1980 e, no ano seguinte, deixei a escola e substituí a arte de ensinar pela música. Em 1983, gravei a primeira Chula no Brasil com Maria Betânia. Era mais confortável ser músico do que ser professor, em todos os sentidos (principalmente financeiro). Eu ensinei bem na época em que fui professor. Mas hoje é mais confortável ser músico.
ACEB – Dificilmente, alguém questiona a importância da matemática na educação formal de uma pessoa, mas não é incomum uma mãe se preocupar quando ouve um filho dizer que a aula de que mais gosta na escola é a de música ou que quando crescer vai ser cantor. Escolher a carreira musical no Brasil ainda é um grande desafio? Viver de música no país é viável ou ainda há muitos talentos sendo enterrados por falta de incentivo?
ROBERTO MENDES – Em Santo Amaro, não há muita dificuldade em relação a esse incentivo. Na década de 30, por exemplo, os pais que tinham três filhos diziam que, com certeza, um seria músico, o outro padre e o outro professor. Não era tão difícil fazer música. Não havia imposição. Para viver de música, basta aprender a viver bem e com pouco. A música profissional vira produto, mas existe canção que vira louvor pela oralidade. A música me resolve como oração e não como produto.
ACEB –Ter aulas de música na escola ainda é uma realidade para poucos. Em sua opinião, a ampliação dessa oferta poderia colaborar na utilização da música como instrumento de formação da cidadania?
ROBERTO MENDES – Pode ajudar, na cidadania, na prática da convivência. A música não precisa ser ensinada só na escola. A música orgânica se aprende na oralidade. É o canto de labor, do qual eu me aproximo agora, com as chulas. A razão de ensinar é o conceito. Eu prefiro a música sem conceito, a que surge da necessidade de resolver a saudade, a dor, a perda. A música fora da academia tem uma função, dentro é mais conceitual. Mas vale a pena, sim, este ensino na academia.
ACEB – Além da musicalização escolar, que outros meios são (ou poderiam ser) utilizados no sentido de valorização da música como instrumento de formação da cidadania?
ROBERTO MENDES – O ideal seria que a música ensinada na escola fosse além da música formal, que se investisse no sotaque rural para dentro das escolas. Assim a escola poderia traduzir a música orgânica, da convivência livre. Se pudéssemos juntar as duas coisas, teríamos a grande tradução do comportamento musical de um povo.
ACEB – Em seu livro “Chula – comportamento traduzido em canção”, em autoria com o jornalista Waldomiro Júnior, você aborda a influência da música raiz do recôncavo baiano na formação da nacionalidade brasileira. O que te levou a se aprofundar nessa pesquisa e como avalia os resultados apresentados através desta obra?
ROBERTO MENDES – A chula é música, fé, dança, poesia e festa, embalada pelo violão em percussão ferida. É o samba antes do samba. Ela surge em meados do século XIX. Quando a Baía de Benin foi fechada, os sudaneses, ao passar pela Ilha da Madeira, trouxeram para o Recôncavo a viola 3/4 e a machete que, aqui, se juntaram ao batuque (cabila ou cabula) já existente no Brasil há 200 anos. Juntos, eles formam o canto violado que passou a se chamar de chula. Em 1854, nasce em Santo Amaro Tia Ciata, que ao crescer começa a fazer comida para vender e ajudar na libertação dos escravos. No quintal de sua casa, se reuniam diversos sambistas. Quando ela saiu daqui, em 1876, levou esse canto violado para o Rio de Janeiro. Historicamente, o samba nasceu em Santo Amaro e eu tenho muito orgulho disso. O samba de roda, que foi declarado obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 25 de novembro de 2005, é uma das vertentes da chula, que defino como um belíssimo canto português com letras compostas organicamente em redondilhas menor e maior, ou seja, em versos de cinco e sete sílabas.
ACEB – Outro livro de sua autoria, “Sotaque em pauta – Chula: o canto do recôncavo baiano”, também assinada pelo compositor Nizaldo Costa, foi fruto de três décadas de pesquisa. Como explica esse grande interesse pela chula e de que forma você percebe a influência desse gênero na formação da cidadania dos moradores do Recôncavo Baiano especialmente?
ROBERTO MENDES – A cidadania está viva neste encontro da viola com o tambor (que entrou aqui como percussão ferida). A maneira de falar é a maneira de cantar. Tanto que você vê a ausência das palavras proparoxítonas no canto brasileiro. Refiro-me à chula como comportamento traduzido em canção. A oralidade não se explica. O interesse pela chula é porque ela nasceu em Santo Amaro, de onde nunca saí.
ACEB – Como você avalia a popularização de gêneros como a chula, o samba de roda e o ijexá nos dias de hoje? Qual a importância de torná-los mais difundidos culturalmente?
ROBERTO MENDES – Um povo é reconhecido pelo que come e pelo que fala. O canto é a melhor tradução disso, desde que não sofra influência do Estado em mudar a clave, talvez. Organicamente, a música está definida em seu Estado como herança de costume que gera desejos e vontades. A música é a dona do sotaque. Cada cidadão é o que fala e o que come. É preciso ter muito cuidado ao divulgar isso porque às vezes você transfere a parte como se fosse o todo. A arte não representa a cultura, ela a traduz para o mundo. A regra e a maneira de ser estão na cultura. Está viva, evolui lentamente e não perde a nascente.
ACEB – Sobre o seu décimo disco, que está em fase de produção, que informações você poderia nos antecipar? (risos)
ROBERTO MENDES – É um disco produzido pelos filhos Léo, João, Ted (filho que a música me deu) e por meu outro filho Gustavo, que vai tocar também. É comemorativo aos meus 66 anos de idade e 45 de música. É um disco de tradução do comportamento do Recôncavo. Revela a maneira de tocar e cantar o Recôncavo. Ainda não sabemos o título do disco.
ACEB – Muito obrigada pela entrevista!