Por Onã Rudá*
“Eu não sou racista… tenho até amigos negros; Eu não sou racista… meu pai era negro… minha mãe, meus avós… eu fui criado por uma mulher negra!”
Eu tenho certeza que você já ouviu isso. E é engraçado como existe o racismo mas ninguém é racista. E aí surgiu a pergunta: “afinal de contas, quem é racista?”
Existe uma produção gigantesca, feita, ao longo da história, pelos movimentos, pela luta anti-racista, que às vezes é até chato ficar explicando isso assim, direto e constantemente. Mas, eu decidi que vou explicar isso mais uma vez e aí vocês vão pesquisar pra poder se aprofundar melhor sobre o assunto, certo? Aproveita pra poder mandar esse vídeo pra aquele seu amigo, seu parente, que vive dizendo esse tipo de coisa.
Existem alguns mitos que foram construídos ao longo da história do Brasil. O mito do brasileiro cordial, o do brasileiro não agressivo/violento, e, sobretudo, o mito da democracia racial.
Pra entender melhor, a gente vai ter que voltar um pouquinho no tempo. Durante o período de escravidão, os negros eram tratados e entendidos como não-humanos. Eles não tinham direito nenhuhm. Eram entendidos como propriedades. Por isso que boa parte da classe dominante foi contra a abolição.
O fim da escravidão veio com um processo de luta, de mais de 275 sociedades abolicionistas, diversas guerrilhas, batalhas e quilombos eram fruto desse processo de resistência travada pela comunidade negra que a gente tinha na época. Nós não passamos por um processo de reparação, e não ia ser da noite pro dia, por conta de uma lei – que tinha dois artigos – que as coisas iriam mudar, que as pessoas iriam passar a entender que, quem até aquele momento era ‘não-humano’ era cidadão, digno de direitos e que deveria ter acesso a todos os estados, ao mercado de trabalho, à educação, aos espaços de disputa política. Existiam até outros projetos de lei que buscavam essa reparação, mas a aprovação da Lei Áurea veio como uma medida de conter a crescente dos movimentos abolicionistas que estavam acontecendo no Brasil e queriam, justamente, que nós tivéssemos essa reparação.
Aí vem a constituição da República e a comunidade negra – que naquele momento já se constituía como maioria na sociedade – começa a ser encarada como um problema, “o problema do negro”. O que fazer com essas pessoas que estavam aqui, em número expressivo. Aí ‘dana’ a trazer gente de fora pra cá, buscando o enbranquecimento do Brasil, porque existiam pensamentos, na época, que o negro era inferior e a miscigenação acabaria com a existência de pessoas negras. Aí começam a trazer europeus, pessoas brancas… e elas tiveram total acolhimento do estado ao chegarem aqui, diferentemente dos negros que já estavam na terra. Elas tinham mesadas, ganhavam terras… ocupavam todos os postos de mercado de trabalho assalariados que tinham na época. A vida dessas pessoas era a política pública do estado brasileiro. E foram os mitos que citei anteriormente que ajudaram a manter os interesses das elites brancas inoperáveis, com as pessoas negras ocupando sempre os lugares considerados inferiores da sociedade.
O Estado brasileiro passa, então, a negar que existem problemas oriundos de desigualdade racial e quem denunciasse era tido como alguém “complexado”. A ditadura militar chega a perseguir intelectuais que tratavam do assunto e os próprios movimentos negros. Diziam que estavam falando de coisa que não existita. Até hoje, esse processo de reparação nunca aconteceu. O mito da democracia racial vai dizer que a comunidade negra já está plenamente inserida na sociedade, e o mito do brasileiro não violento diz assim: “não, eu não sou agressivo. Eu sou cordial. Se você fala em alguma violência praticada por mim, não sou eu o violento, é você que é complexado”. Vocês entendem a “sofisticação” dessa construção?
Então, o racismo se constitui como um sistema estrutural praticado consciente e insconscientemente em todas as relações institucionais, sociais, de poder… que coloca pessoas negras em desvantagem e ocupando um lugar inferior no imaginário coletivo. É por isso que, se você é branco nessa sociedade racista, você é racista. Mesmo que você não ande dizendo que quer ver pessoas pretas mortas. Mesmo que você nunca tenha xingado niguém diretamente, ou qualquer coisa do tipo. As pessoas praticam racismo nas mínimas coisas. Muitas vezes sem nem perceber. Isso é fruto da sofisticação do racismo que a gente tem no Brasil, que a gente pode dizer que é aberto e, ao mesmo tempo, velado. Aí usar a “carteirinha” do amigo ou parente negro é uma coisa que só piora a justificativa, porque eles que são alvos desse sistema. Dizer que foi criado por uma mulher negra só fortalece a demonstração de como o racismo está acontecendo no seu entorno.
Agora, você pode tomar a decisão de se desconstruir e ser anti-racista, só que essa é uma decisão que tem que ser cotidiana, posta em prática com gestos e atos que ajudem a mudar essa estrutura social que está imposta pra gente hoje
Então, vamos parar de gastar tempo com essa busca de um lugar não violento, de “ah, não sou racista…”. Vamos parar com esse tipo de coisa e gastar tempo estudando a complexidade do racismo, como ele acontece ao nosso redor, no nosso dia a dia; como ele tem uma “engenharia” sofisticada que faz com que, às vezes, a gente nem perceba que ele está acontecendo. Eu tenho certeza que isso vai ser mais importante na luta que a gente tem que travar por uma sociedade mais justa, mais igual e mais humana.
Texto publicado originalmente em Aratu On-line
*Creators, Ativista anti-racista. Fundador da torcida @lgbtricolor do Bahia. Palestrante