“A gente não quer só comida. A gente quer comida. Diversão e arte”. Mesmo constando em uma famosa música dos Titãs, o recado de que o Estado deve garantir a todos o acesso à cultura parece não ter sido ouvido pelo ministro da Economia Paulo Guedes, quando este decidiu apresentar uma proposta de reforma tributária que taxa os livros em 12%. Um abaixo-assinado, que passa de 1 milhão de apoiadores, tenta lembrar o ministro dessa obrigação.
A petição simboliza a reação da sociedade sobre o plano de acabar com a isenção de impostos assegurada aos livros pela Constituição Federal. O abaixo-assinado, que segue aberto na plataforma Change.org, alcançou a marca de 1 milhão de pessoas engajadas em apenas duas semanas. Nesta quinta-feira 27, já chegava a mais de 1.028.000 assinaturas.
“Acreditamos que a leitura é fundamental para a criação do senso crítico dos indivíduos, e todas as classes deveriam ter o direito de fazer uso dela”, diz a estudante Letícia Passinho, de 21 anos, uma das integrantes do grupo que lançou a petição na internet. “A leitura deve ser incentivada e não o contrário, livro não é apenas mercadoria, livro é cultura”.
A jovem, que mora em Porto Seguro (BA) e cursa Arquitetura e Urbanismo, acredita que a proposta do ministro empobrecerá ainda mais a cultura ao dificultar o acesso que muitos brasileiros já não possuem. Atualmente, esse tipo de produto é livre de impostos pela Constituição Federal de 1988 e, desde 2014, possui alíquota zero de PIS/Cofins.
A primeira parte da proposta de reforma tributária levada pelo governo à Câmara dos Deputados, por meio do projeto de lei (PL 3887/2020), unifica a cobrança do PIS e do Cofins, criando um tributo sobre valor agregado – a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Dessa forma, os livros passariam a ser taxados em 12% pela CBS.
Depois de enviar o PL à Câmara, o ministro da Economia alegou que livro é um bem de consumo da elite e que o governo poderia distribuí-los gratuitamente aos pobres. As reações foram imediatas e partiram não só de escritores, livreiros e editoras, que seriam mais diretamente afetados pela mudança, mas da sociedade em geral, demonstrando que o brasileiro quer e deve, sim, ter o acesso à educação e cultura facilitado pelos governos.
“Sabemos que apenas uma parcela da população tem acesso a livros e não por falta de vontade de ler, mas sim porque não há essa possibilidade para muitos”, rebate Letícia sobre a fala de Guedes em relação ao já alto custo dos livros mesmo com isenção de taxas. A jovem, que estudou no ensino público, lembra que chegou a passar um ano inteiro sem tocar em um livro didático dentro da escola porque não havia material disponível para todos na instituição.
Ação em defesa do livro
“Esse engajamento, para nós, representa a importância da leitura e do acesso ao livro. Vimos as mais variadas pessoas que estavam dispostas a lutar por essa causa”, conta Letícia sobre a grande quantidade de brasileiros que juntaram à mobilização em torno da petição. “Percebemos ainda mais as camadas que essa reforma tributária atingiria”, completa a jovem que integra um grupo de leitura e discussão sobre livros no Twitter, o “Clube da Nestha”.
A estudante de enfermagem Dinah Adélia, 20, que faz parte do mesmo coletivo de leitoras assíduas, conta que as jovens do clube do livro ficaram indignadas com a proposta de tributação e a pouca repercussão da notícia naquele momento. Então, decidiram se articular, aproveitando a potência do webativismo para mobilizar a sociedade e fazer pressão. Uma das integrantes, uma estudante de Engenharia, de 17 anos, teve a ideia de lançar a petição.
“Nós criamos [o abaixo-assinado] e começamos a divulgar no Twitter; depois veio a ideia da hashtag e criamos as contas oficiais no Twitter e Instagram @defendalivros”, comenta Dinah. As jovens se surpreenderam tanto com o total de usuários que se engajaram na petição quanto com o alcance da campanha nas redes sociais. Em apenas uma hora, a hashtag já havia atingido o primeiro lugar entre os assuntos mais comentados no Twitter.
Sobre a afirmação do ministro de que o governo daria livros de graça aos pobres, Dinah questiona: “Quais seriam esses livros?”. “As pessoas devem ter o acesso a livros e a escolha também. Seu pensamento crítico deve ser moldado a partir de várias temáticas que lhe interessam e o governo não deve escolher qual tipo de informação a população tem acesso”.
O grupo, que foi criado pela estudante paulista Renata Gutierrez, 18, segue mobilizado pela causa até que seja derrubado o projeto de lei com a proposta de taxar livros. O PL aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que vem sendo pressionado pelo coletivo através do abaixo-assinado e das redes sociais.
Onze jovens de diversas regiões do país, como dos Estados da Bahia, Rio Grande do Norte, São Paulo e Mato Grosso, fazem parte do grupo. Entre elas há pelo menos duas aspirantes a escritoras – a Isabela Marinho, 18, e a Rebeca Carneiro, 21, – que podem ter seus sonhos dificultados pela proposta do governo – prejudicial a todo o mercado editorial.
Arrecadação ao custo da formação intelectual
Entidades representativas do setor de livros também pressionam para que o projeto de lei não avance. Entre outras associações, a AbreLivros, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) lançaram um manifesto. O documento afirma que a reforma tributária elevará o preço dos livros, mas que isso não resolverá o problema de arrecadação do governo, além de significar um “desinvestimento” para o país.
“É fácil calcular o quanto o governo poderá arrecadar com a nova CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), proposta em regime de urgência ao Congresso. Muito mais difícil é avaliar o que uma nação perde ao taxar o bem comum da formação intelectual de suas cidadãs e cidadãos”, ressalta o manifesto. Para as entidades, o crescimento futuro do Brasil não se dará sem o crescimento intelectual amplo e igualitário de sua população.
Opositores da proposta apontam outras possibilidades de arrecadação que poderiam ser contempladas na reforma tributária e trariam resultados mais eficientes para as contas do governo, como a taxação de grandes fortunas e impostos sobre bens como iates e jatinhos.
As associações ponderam, ainda, que a popularização do livro, ocorrida por medidas tomadas em outras gestões, teve papel fundamental para o aumento da educação do brasileiro. Segundo pontuam, quanto menos livros houver em circulação, mais haverá elitismo no conhecimento e desigualdade de oportunidades. Assim, enxergam a leitura como fonte de educação, crescimento intelectual, formação cidadã e difusão da cultura e informação.
“O escritor e editor Monteiro Lobato cunhou a famosa frase ‘um país se faz com homens e livros’; anos depois, o editor José Olympio acrescentou: ‘…e ideias’. Ai do país que se torna um deserto de homens, livros e ideias. Queimado em praça pública sempre que a intolerância triunfa, o livro resistiu aos séculos e atravessou as crises tendo a sua significação para a humanidade renovada e fortalecida”, destaca um trecho do manifesto das associações.
Se aprovada, a medida poderá gerar um impacto em cadeia pelo mercado editorial. Com livros mais caros, menos vendas seriam feitas nas livrarias e distribuidoras, o que afetaria diretamente a produção das editoras. Mesmo com a atual isenção, algumas redes de livrarias já enfrentam sérias dificuldades para se manter no país e optam por fechar suas lojas.
Publicado originalmente no site: Carta Capital