Em artigo, ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro discute como a série pode inspirar mudanças para tornar o ensino médio mais criativo
A série catalã Merlí, que trata de um professor de filosofia no ensino médio, é uma notícia muito boa para quem se interessa em discutir como pode ser criativo, envolvente e empolgante um curso no ensino médio. Ela se aplica à matéria de filosofia, mas poderia eventualmente ser pensada para outras, sobretudo na área de humanas.
LEIA MAIS Ensino Médio: Base vai ter Português, Matemática e…
O ponto básico é que Merlí está procurando ligar a filosofia e a vida. Não é por acaso que ele aparece, mais ou menos, no início da série levando um retrato de Nietzsche para o seu gabinete na escola. Nietzsche foi um filósofo que se interessou muito pela relação entre a filosofia e a vida. Nesse sentido, é muito diferente inspirar-se em Nietzsche e, por exemplo, dar um curso de filosofia sobre a história do conhecimento filosófico, mas de forma desconectada da vida dos jovens.
A relação entre a filosofia e a vida é um ponto constante em todos os capítulos. Mesmo autores que não são tão conhecidos pelas suas reflexões sobre a vida, como Kant ou, mais remotamente, Aristóteles, são chamados a participar dessa utilidade que tem para os jovens e para a vida deles. E eu falei utilidade. Trata-se de mostrar conhecimento. É útil, mas nunca utilitário. O bom conhecimento não é utilitário. Ele não é um conhecimento que se limita a um manual de instruções de como subir na vida, ganhar mais salário, etc.
Há um episódio no qual uma outra professora vai falar do ensino universitário e das graduações que os alunos podem fazer. É quase como uma venda de mercadorias, tanto que Merlí pergunta se ela também vai oferecer ovos cozidos. É um cardápio que ela está apresentando, denuncia ele. O que ele está interessado é em outra coisa: ver como todas as questões que aparecem na vida das pessoas, e são particularmente agudas neste período de transição da infância para a idade adulta, da idade de dependente para a idade de responsável, da subordinada para a idade adulta, podem encontrar respostas na filosofia. Não se trata, porém, de autoajuda. Ele não está procurando dizer que as pessoas façam isso ou façam aquilo.
E quais são os tipos de conflitos que aparecem? Conflito com o pai, com a namorada, com uma professora que é trans e é discriminada, mas passa a ser respeitada a partir do que Merlí faz com ela. Um menino que sofreu bullying e não volta mais a escola, e Merlí se responsabiliza e se encarrega de trazê-lo de volta. A vida sexual dos jovens, a vida sexual do próprio professor Merlí.
Um ponto interessante é que o professor é extremamente iconoclasta, o que quer dizer que ele é destruidor de imagens consagradas e idolatradas. Nessa destruição de ícones, Merlí evidentemente passa às vezes do limite. Ele questiona as regras, tanto as injustas quanto as justas. O interessante é que ele não está fazendo uma pregação de desobediência. Ele está mostrando que a filosofia é um espaço de questionamento. Muita coisa, que pode ser até mesmo correta, deve se passar primeiro pelo crivo do questionamento.
Esse é um ponto que talvez seja tão importante, porque à medida que se aproxima o final da história, há um questionamento ao próprio Merlí. O próprio professor, embora tenha um papel fabuloso, é questionado. É curioso o confronto entre ele e uma nova professora que é dinâmica, cativante e fascinante. Mas todo esse caráter cativante e fascinante é apenas um método pedagógico, não é algo que vem de dentro. Em Merlí, os questionamentos e as medidas alternativas vêm de dentro. Por exemplo, se ele coloca alguma coisa própria, você nota que ele está questionando mesmo. A jovem professora tenta dinamizar o curso colocando slides e dizendo qual é a resposta certa. São respostas apenas factuais. O alunado vibra, salta, mas é apenas um quiz. Não tem nenhum efeito na mudança das pessoas.
Eu penso que quem trabalha com jovens, com filosofia e com ensino médio em geral deveria acompanhar essa série. Deveria pensar o que nós podemos mudar nesta etapa para que ela fique mais perto da vida dos jovens. Hoje, o problema grande do ensino médio é esse: ele está muito afastado da vida. Na verdade, esse é o grande problema da educação.
Quando eu fui ministro da educação, no ano de 2015, minha preocupação básica era a seguinte: por que até entrarem na escola fundamental, até uns 6 ou 7 anos, as crianças gostam tanto do que aprendem? Elas chegam em casa da escola ou da creche contando para os pais o que aprenderam e depois perdem esse gosto. À medida que vão estudando, elas começam entender a escola como um lugar aborrecido. Eu tenho certeza que os alunos de Merlí jamais acharam a escola deles aborrecida. Esse é o ponto crucial, talvez, para a gente pensar educação hoje.
* Artigo publicado originalmente no site do Porvir