Bahia de todas as cores, classes, crenças e gêneros

Uma mascote negra. Homenagens a Marielle Franco e Moa do Katendê, assassinados por motivações políticas. Criação do “Bolsa Ídolo”, que ampara ex-jogadores em dificuldades financeiras. Ronda Maria da Penha no estádio da Fonte Nova para proteger as mulheres. Solidariedade a Claudia Leitte após a cantora, torcedora tricolor, sofrer assédio machista do apresentador Silvio Santos. Ao inovar com seu Núcleo de Ações Afirmativas, o Esporte Clube Bahia pretende não apenas promover transformações sociais por meio do futebol, mas se consolidar como o time mais democrático e inclusivo do Brasil.

O desafio surgiu no fim do ano passado, quando o empresário Guilherme Bellintani, então secretário de ACM Neto (DEM), decidiu se afastar do trabalho na prefeitura de Salvador para concorrer à presidência do Bahia. Durante a campanha, ouviu apelos de sócios e torcedores para que o clube dialogasse mais com a torcida e se integrasse melhor à comunidade baiana, fazendo valer a fama de time da massa. Depois de vencer a eleição, não teve dúvidas em instituir, logo nos primeiros dias de mandato, o único departamento de ações afirmativas do futebol brasileiro. “O Bahia representa muito da identidade cultural e social do nosso Estado”, afirma Bellintani. “Por isso, temos obrigação de nos posicionar, frear extremismos e apoiar causas que vão além do campo de jogo.”

Com menos de um mês de existência, o Núcleo de Ações Afirmativas lançou sua campanha inaugural no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, destacando religiões de matriz africana e a história do sincretismo religioso na Bahia. Desde então, não parou mais de fazer barulho no estádio e nas redes sociais. Uma das ações de maior repercussão foi a Não há Impedimento, em combate à discriminação de gênero. Rendeu ao clube o troféu Honra ao Mérito da Diversidade Cultural LGBT, concedido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), mas também protestos homofóbicos de alguns torcedores e deboches dos rivais. Porém, nada que abalasse a convicção tricolor de romper o tabu ao enfrentar preconceitos. “A maioria das reações foi positiva”, conta o presidente. “Nossa torcida tem entendido a mensagem de tolerância e respeito às diferenças que o Bahia quer passar.”

Outra bandeira permanente é a Mulheres no Futebol, que incentiva a participação feminina no clube e nas arquibancadas. Em março, mais de 1200 torcedoras – a maioria negra – responderam um questionário que revelou que 43% delas nunca foram sozinhas à Fonte Nova e 38% têm receio de frequentar o estádio por medo de serem assediadas, discriminadas ou agredidas em brigas de torcida. Com base nas principais queixas, o Bahia desenvolve ações práticas para aumentar a frequência de mulheres, como a parceria com a Polícia Militar que levou a Ronda Maria da Penha – composta por muitas oficiais do sexo feminino – para atender exclusivamente às torcedoras na Fonte Nova. Segundo a diretoria, o apoio ao desabafo de Claudia Leitte contra Silvio Santos na semana passada é coerente com a postura do clube em defesa da mulher. “As campanhas de responsabilidade social do Bahia são muito importantes, porque ajudam a agregar mais torcedoras”, afirma Júlia Fraga, integrante da torcida Tricoloucas.

As mulheres também foram lembradas na série de três ações do Novembro Negro que exalta heróis e personalidades negras. Na primeira, jogadores entraram em campo estampando em suas camisas nomes históricos como Dandara, Luiza Bairros, Mãe Menininha do Gantois, Zumbi dos Palmares e Moa do Katendê. Na segunda, os homenageados foram artistas, integrantes do movimento negro e ativistas, entre eles o cantor Gilberto Gil, o repentista Bule-Bule, o antropólogo Kabengele Munanga, a ialorixá Mãe Jaciara e a influenciadora Tia Má. “Fizemos questão de homenagear inclusive torcedores do Vitória, para provar que a luta contra o racismo está acima de qualquer rivalidade”, diz Bellintani. A última ação do mês será nesta quinta-feira, antes do jogo contra o Fluminense, quando 23 ex-jogadores negros que defenderam o clube, como Cláudio Adão, Dadá Maravilha, João Marcelo, Fabão e o camaronês William Andem, serão prestigiados.

Outra forma de reverenciar o passado é o Dignidade ao Ídolo, programa de assistência social a veteranos notáveis da equipe que passam por necessidades. Uma pequena parte da receita anual (0,31% – número simbólico que remete a 1931, ano de fundação do clube), equivalente a cerca de 400.000 reais, é destinada para o pagamento de até três salários mínimos por mês a ex-jogadores em situação de vulnerabilidade. Um dos sete contemplados pelo “Bolsa Ídolo” é o ex-lateral Maílson, que teve o corpo paralisado pela Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). “Além de dar orgulho à torcida, por cuidar da nossa memória, o benefício é um recado aos jogadores atuais”, afirma o presidente tricolor. “Mostramos que vale a pena se tornar ídolo do Bahia, que eles não serão desamparados no futuro.”

Revolução com democracia e inclusão

O Núcleo de Ações Afirmativas é formado por funcionários do clube, mas também por professores universitários, líderes de movimentos sociais e coordenadores de ONGs. Por abraçar a defesa dos direitos de minorias, o Bahia já foi tachado de “esquerdista” e “comunista”. No entanto, de acordo com Bellintani, o Esquadrão de Aço se mantém neutro na política, embora não tenha se omitido de posicionamentos que pudessem gerar discordância entre torcedores durante as eleições. “Não sabíamos que o país estava tão dividido. Mas tomamos posição de maneira equilibrada, sem nenhum intuito de partidarizar questões. Nossa linguagem é de convergência.”

Para a atual gestão, a abertura às ações afirmativas é fruto do processo de democratização do clube, iniciado com o interventor Carlos Rátis e o mandato provisório de Fernando Schmidt, que interromperam o período de 15 anos em que as famílias Guimarães e Barradas se revezaram no poder. Após a deposição de Marcelo Guimarães Filho por improbidade administrativa, a modernização do estatuto do Bahia se tornou prioridade. Sob o comando de Rátis, ainda em 2013, foi aprovada a eleição direta para presidente. Na gestão de Marcelo Sant’ana, que assumiu em 2015, as finanças foram saneadas, dando fôlego ao sucessor para tocar o futebol e seguir com a “revolução” institucional.

Em maio, o Bahia deu um passo importante rumo à inclusão da população mais pobre em seu quadro de sócios. Com mensalidade de 45 reais, o plano Bermuda e Camiseta abriu 2.000 vagas para torcedores que recebem até 1.500 reais se associarem e, consequentemente, ganharem direito a voto – em agosto, o Conselho Deliberativo aprovou a votação pela internet para tricolores de fora de Salvador. Novas vagas da modalidade popular devem ser abertas em janeiro. Também neste ano, o clube anunciou a própria marca de uniformes e está prestes a lançar um modelo de camisa mais acessível (99 reais) que a oficial, que hoje custa 219 reais.

Ainda assim, grupos de torcedores como a Frente Esquadrão Popular reivindicam ingressos mais baratos e maior diversificação em posições de destaque: “Se os negros são maioria na torcida do Bahia, por que são tão poucos no Conselho Deliberativo?”. As mulheres também são minoria (menos de 10%) entre os 23.000 sócios. O time feminino só foi criado no início de novembro, em parceria com o Lusaca, por exigências do Profut e da Conmebol. Guilherme Bellintani reconhece que o clube ainda está longe de espelhar a sociedade baiana em seus quadros, mas defende o aprimoramento dos mecanismos democráticos para mudar essa realidade nos próximos anos. “Buscamos uma transformação real, não de fachada, como as cotas para mulheres em partidos políticos. Com a manutenção das políticas inclusivas, o Bahia terá mais diversidade no Conselho e na diretoria.”

Dentro do clube, há o consenso de que o bom momento esportivo, na esteira de títulos da Copa do Nordeste e do Campeonato Baiano, somado a duas temporadas consecutivas na Série A do Brasileirão, estimula um ambiente favorável para ampliar as campanhas afirmativas. “Se o desempenho do time fosse ruim, ia ter torcedor mandando a gente cuidar do futebol”, diz Bellintani, convencido de que a revolução no clube será duradoura, independentemente de tropeços e conquistas. “A grande lição do Bahia é provar que democracia combina com resultado em campo. Não promovemos inclusão e ações sociais por marketing. Mas por acreditar que o futebol pode dar sua contribuição para melhorar a sociedade”.

Publicado originalmente no site El País Brasil.